À noite, todos os gatos são pardos
“A lucidez é um luxo que nem todos se podem permitir.” (José Saramago)
Naquele dia, o carro precisou ficar no mecânico para consertar o batente do amortecedor. Que suspensão aguenta com tantos buracos nas ruas? Nem suspensão, sequer alma viva. Saí do trabalho, pseudoconformado, praguejando entre os dentes e peguei o ônibus na Duque de Caxias, já de noitinha. Entrei, paguei em dinheiro, agradeci ao motorista e ei na roleta. O veículo já lotado, conduzia algumas pessoas em pé, mas surpreendentemente havia um único lugar disponível, ao lado de uma senhora de sessenta e poucos anos, à janela. Aproximei, esperei que ela facilitasse o caminho, encolhendo as pernas, e sentei-me .
– La nuit, tous les chats sont gris. – disse a mulher, inclinando levemente a cabeça para o meu lado. Segurava um livro fechado sobre o colo, mantendo as mãos espalmadas sobre ele.
– À noite, todos os gatos são pardos... – comentei baixinho, em resposta à sua proposição.
– Você foi seguido? – perguntou ela, o rosto firmemente direcionado para a frente.
– Como é? – redargui, virando surpreso para ela.
– Não olhe para mim. Você foi seguido? – censurou-me, ao que tomei igualmente sua postura. Ora, cacetas.
– Seguido? Do que a senhora está falando? – questionei impaciente, no momento em que o ônibus parava novamente para o embarque de mais ageiros.
– Excelente... mantenha o disfarce. Não faça movimentos bruscos. Eles são todos inimigos. – disse ela, quando o veículo arrancou outra vez. O som do ar condicionado e as conversas paralelas abafavam nossa voz.
– Inimigos de quem? – perguntei, ainda mais confuso. O que essa mulher está falando aí?
– Da Coroa... – explicou a senhora, e foi então que me dei conta de que ela era louca de pedra. Louquinha, louquinha. Puta que o pariu, era só o que me faltava a essa altura do campeonato.
– Senhora, eu realmente não sei do que... – tartamudeei, mas ela me interrompeu bruscamente, num pito sussurrado e nervoso.
– Cale a boca, pelo amor de Deus! Não vê que estamos em perigo? Apenas ouça: a sua missão é entregar o pacote intacto ao chefe. – determinou ela, ando o livro para as minhas mãos. Putzgrila. Está cheio de maluco andando por aí, terráqueo.
– Ora, e que chefe? – perguntei, de maneira automática, para logo depois me arrepender.
– O Grão-mestre, chefe da Ordem dos Cavaleiros. – explicou ela, com seriedade. Embora não pudesse encará-la, imaginei que tivesse as feições sisudas e enigmáticas, a fim de manter aquela aura de mistério que nos envolvia. Percebi que não conseguiria nada retrucando e decidi entrar no jogo.
– Companheira, sinto lhe dizer que não sou o seu contato. Vim à frente apenas para que fique tranquila, ele pediu que eu a avisasse de que ele já está chegando... – afirmei num tom igualmente soturno, entrando no personagem. Tentei esticar o livro de volta, mas ela se levantou de súbito e puxou a sineta.
– Ótimo. Então, você pode entregar a ele. E lembre-se: não confie em ninguém. Vejo você do outro lado. – disse ela, num murmúrio, finalmente me encarando. O semblante mudou repentinamente quando o ônibus parou, como se alheia a mim, como se nada tivesse acontecido. Acompanhei-a caminhando para saída, ela desembarcou e seguimos viagem.
“E agora, o que faço com essa porra?”, pensei, enquanto folheava brevemente um exemplar surrado de O Alquimista. Estava todo marcado à carmim, com anotações, grifos, números, frases rasuradas ou destacadas. “Ninguém deixa de sofrer as consequências de cada coisa que se a debaixo do sol”, estava circulada, assim como muitas outras.
Ameacei deixar o livro sobre o assento, mas tive a impressão de que os ageiros que estavam de pé me vigiavam, com olhares furtivos, por cima dos ombros, de esguelha. Puta que pariu, mas que porra é essa?
Misterioso leitor, eu já conversei com um sem número de malucos por aí, mas dessa vez isso foi longe demais. Meu ponto de parada estava quase chegando e eu sem saber o que fazer. Confesso que fiquei um tanto impressionado com aquela história, ainda que sem pé nem cabeça. Achei melhor me afastar para o assento anteriormente ocupado por ela, mantendo o livro fechado sobre o meu colo. E então um jovem se aproximou, esperou que eu franqueasse a agem para ele, e sentou ao meu lado.
– La nuit, tous les chats sont gris. – comentei, inclinando levemente a cabeça para o seu lado. Mas ele não me respondeu.
O Portal Multiplix não endossa, aprova ou reprova as opiniões e posições expressadas nas colunas. Os textos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores independentes.